Imposto de Renda Negativo e Renda Básica Universal

Esses dias estive envolvido em algumas discussões e reflexões sobre esses dois temas, as noções de Imposto de Renda Negativo e o seu conterrâneo, a Renda Básica Universal.

Para quem nem nunca ouviu falar deles, vai um resumo exetutivo:

  • Imposto de Renda Negativo, apesar do nome, é mais ou menos o Imposto de Renda qual conhecemos hoje, com a diferença que em vez de ele ter uma faixa de isenção inicial, cobrando imposto apenas de quem ganha acima de uma faixa, ele começaria a partir de um patamar negativo de renda (e daí o nome). O efeito disso é quem tivesse pouca ou nenhuma renda estaria na faixa negativa, e portanto receberia dinheiro, em vez de pagar;
  • Renda Básica Universal, por outro lado, é mais direto e simples: todo mundo recebe o mesmo valor minúsculo, mensalmente, sem questões ou condições.

A parte em que as duas noções se encontram é que ambas são mecanismos de transferência de renda, e focados naqueles de baixíssima ou nenhuma renda. As maiores diferenças são algo no nível de detalhe de implementação, e dependendo de como mexer nos detalhes, elas acabam convergindo… até certo ponto.

O que ambos os projetos propõem é retirar “condições” e “direcionamentos” dos programas de enfrentamento de pobreza, que desde sempre são muito caros, um verdadeiro custo que retira dinheiro que chega na ponta e, francamente, falham miseravelmente em causar os direcionamentos que se propõem.

A Renda Básica vai no cerne dessa questão, simplificando a atendimento ao máximo: todo mundo recebe, ponto. Isso reduz a burocracia ao mínimo, aumentando a efetividade e diminuindo as distorções. Já o Imposto de Renda Negativo faz um pouco mais de conta, ao entregar apenas um diferencial de renda.

Agora ao ponto que importante qual eu queria chegar: ainda que possam ser muito semelhantes em resultado final, Imposto de Renda Negativo e Renda Básica Universal são muito diferentes durante a implementação.

Isso porque embora a Renda Básica Universal seja um objetivo interessante em si mesmo, ele é algo utópico de se implementar. Isso porque são necessários dois passos:

  1. Retirar os benefícios atuas;
  2. Implantar a Renda Básica Universal.

Muita gente fala do (2), mas o que sempre dá problema é o (1). Eis que o objetivo é tirar condições e direcionamentos, mas para efetivamente realizar isso, é necessário demolir as condições e direcionamentos existentes. Ou tão diretamente quanto possível: de eliminar os benefícios atuais. Coisa que quase nunca ocorre. E por sua vez, elimina a impede a implementação de Renda Básica em todo lugar.

É aqui que a ideia mais antiga, e um tanto esquecida, mostra o seu valor. O Imposto de Renda Negativo permite criar uma sistemática de Renda Básica Universal mesmo na presença dos programas atuais, ao realizar uma aritmética tão simples quando efetiva, a saber:

  1. Acrescenta a Renda Básica Universal, para cada pessoa viva;
  2. Subtrai os valores repassados em programas assistenciais outros, para a mesma pessoa.

Ou seja, um sistema de Imposto de Renda Negativo tem o potencial de permitir a criação de um sistema de Renda Básica Universal, com menos riscos de aumentar ou reforçar condições, direcionamentos e duplicações durante a implantação do sistema.

Eis que consigo imaginar os comentários sendo digitados imediatamente à essas afirmações, no sentido que um Imposto de Renda Negativo ainda assim vai contra a noção de Renda Básica Universal de ser, bem… Universal, todos recebem e todos recebem sem condições. Ter de pedir para as pessoas fazerem Imposto de Renda mensal para, daí, recebem a RBU é vexatoso e condicionante.

À segunda colocação eu diria que não é vexatório ter de fazer Imposto de Renda, e que mensal não é nem uma coisa que é requisitada em programas sociais, sendo mais espantalhos que argumentos. Quanto a primeira, eis uma observação importante que surgiu nas conversas e reflexões, que qual é o verdadeiro motivo desse post. E é o seguinte:

O Imposto de Renda Negativo não é uma questão da Receita Federal.

Isso, e literalmente isso. Ainda que nesse caso não deva ser chamado de Imposto de Renda algo que não seja de domínio da Receita Federal (por conta de nomeclaturas de lei), o ponto principal reside. O Imposto de Renda Negativo, como uma política pública da baixa ou nenhuma renda, não é atribuição do Fisco e nem, exatamente, deve ser executado por ele.

Bem pode, e provavelmente deve ser executado por órgãos outros, focados em políticas sociais, e não um órgão eminentemente de execução tributária, ainda que possam existir políticas tributárias de cunho redistributivo.

Mas se o nome é a questão, nome então é necessário. Eu estou falando aqui de implantar:

A Renda Básica Universal Líquida

O “Líquida” que é importante, e bem pode ser só detalhe de implementação, em vez de constar no nome.

Novamente e novamente, a RBU deve, pelos seus próprios proponentes, ser universal e sem condições. Porém, por essa mesma razão, não pode ela ser duplicada, paga em duplicado, triplicado ou mais, a qualquer um, seja no próprio benefício ou por benefícios proximais.

E a quantidade de programas sobrepostos é enorme e distorcida, por força de leis, e portanto obrigatórias. A própria inércia legislativa na prática elimina a possibilidade de remoção de benefícios existentes, o que só faz perpetuar a situação, que por sua vez daí impede a realização de RBU.

A noção que Imposto de Renda Negativo e Renda Básica Universal podem, na prática, diferir muito pouco, a depender dos detalhes, é normalmente utilizado para jogar a escanteio a ideia antiga, sem nada avançar na ideia nova. Eis que aqui chamo atenção que deveria ser o contrário, que a proximidade prática em muitos pontos demonstra a viabilidade de se implementar não a RBU, utópica e reforçadora de distorções, mas sim uma versão “líquida” da ideia, mais próxima do Imposto de Renda Negativo, justamente para se atingir os objetivos utópicos.


Adendo em 14/02/2023: Sai em noticiário que uma reforma tributária onde haveria um cashback para baixa renda… Eis um termo que eu não imaginei que seria utilizado, mas… porque não? Comunica a ideia.

“Imposto de renda, com cashback para baixa renda.”

10 comentários em “Imposto de Renda Negativo e Renda Básica Universal”

  1. Oi André, o que você achou do movimento, durante a pandemia, para o auxílio emergencial?

    De longe, muito longe, se assemelha a uma ideia de RBU. As fraudes, por incrível que pareça, contribuíram para a universalidade da ideia, já que universal, significa que Abílio Diniz, Sílvio Santos e o zelador do meu prédio receberiam-na.

    Além disso, como suplantar as nossas barreiras cognitivas? O IRNL demandaria uma DIRPF que seria crucial para quem justamente não tem o alcance mental de fazer sua declaração de bens e direitos -mesmo que sejam esparsos- visto a dificuldade de tais pessoas operar sistemas simples no celular.

    Até!

    Responder
    • Eu achei que se tornou um experimento natural da ideia. Mostrou que sim, é fácil de implementar, e que sim também, gera distorções imediatas no mercado de trabalho. Ainda que no mercado de trabalho mais fragilizado, que é onde se quer alterar, mas não só nele, num contínuo geral.

      A questão das barreiras cognitivas e DIPRF cruzar, acredite, são as questões menores. O Imposto de Renda Negativo (líquido ou não) é um péssimo nome, porque leva a essa noção de que tem a ver com a DIRPF. Não. Não tem. Tem a ver com… o auxílio emergencial, Bolsa Família e afins. Ou seja, tem a ver com um cadastramento separado, que faça pagamentos mensais. Um programa assistencial, não executado pela Receita Federal (que nem pode, aliás).

      Se a pessoa recebeu a mais, sim, depois vira uma ajuste/devolução, que novamente evoca a DIRPF, mas que não continua sendo o caso.

      A ênfase no Líquido, no entanto, sim, é a “inovação” da parte de cognição, e mais ainda, de implantação sem gerar mais distorções. Implantar um IRNL em valor zerado, cria a infraestrutura. Obrigar os programas sociais, de todos os níveis, de reportar ao IRNL, ativa essa infra estrutura. Por fim, basta ligar RAIS e DIRPF. E voalá, todas as informações para uma… Renda Básica Líquida, sem duplicações, e com menos distorções.

      Responder
  2. Não sei André.
    Nós ainda temos dificuldade no “iguais perante lei”, onde alguns são mais iguais do que outros.

    Renda Básica Líquida é um bom nome- pelo menos melhor que Imposto de Renda Negativo Líquido- mas que, pela sua descrição, não é isento de interação beneficiário- sistema. Nossa tradição com sistemas desse tipo não tem um histórico bom. Apesar de reconhecer que o ecossistema tem sim evoluído, a exemplo do sistema de previdência que funciona espantosamente bem em comparação ao passado não tão distante.

    A automatização é uma solução próxima que atinge o zelador do meu prédio mas não atinge a manicure da avó da minha esposa que tem 100% da sua renda fora do radar de qualquer sistema. O pix trouxe o pipoqueiro que fica na porta da escola do quarteirão da minha casa para o sistema, mas ainda existe resistência (estou em MG).

    Eu estive na Ilha de Marajó e uma fonte de renda bem comum é a venda de açaí na porta das casas (tipo as vendas de sacolé ou chup-chup nas cidades do interior). 100% dinheiro. Quando lá fui (2019), a ilha tinha 2 agências de banco. O acesso a internet em Joanes (um bairro) era por rádio. 2019.

    Como você menciona, o processo deveria ser gradual, criando uma infraestrutura, depois ativando- a e em seguida populando-a. Creio porém que, se implementado agora (o agora é uma faixa curta de tempo), aumentaremos ainda mais o abismo entre sistema e vulneráveis.

    O esforço não deveria estar em cadastro e acesso, ao invés de criação de novos sistemas de distribuição? Será que novos sistemas de distribuição terão força para trazer vulneráveis para dentro do sistema (o Auxílio Emergencial deu um bom sinal disso)?

    Responder
    • Bora lá.

      Sobre a interação beneficiário-sistema, isso não é uma questão. As únicas formas de não ter uma interação beneficiário-sistema é não ter beneficiário, ou não ter sistema.

      O não atingimento total dos sistemas (de tributação de renda) não é questão tampouco. Ou menos não é questão nova, que o Cadastro Único (e todos os demais sistemas) já tem de lidar com isso.

      A informalidade é enorme justamente no pessoal de baixa renda, seja em áreas remotas ou literalmente na rua mais movimentada de SP. Ou seja, o público alvo, de qualquer maneira.

      O gradualismo que eu defendo é na linha de, principalmente, evitar duplicidades e triplicidades, não só no nível federal, mas também nos níveis estaduais e federais. A razão que justifica o super rico não receber RBU é a mesma que justifica “ninguém” de Maricá/RJ de receber RBU federal.

      E daí que primeiro cria-se o sistema que só pode ser fundiado a partir de verbas de projetos *existentes*, e ainda que parado num primeiro momento (levantamento da infra), daí vai se chaveando os projetos com menores alcances/alcances muito indiretos para esse de maior alcance e direto.

      (até, nessa linha, muitíssimos municípios e vários estados estão basicamente usando o Cadastro Único para tudo o que se refere a política pública, e portanto, boa parte da infra de listagem e pagamento já existe e funciona).

      Ou seja, o esforço já foi feito. Só está fragmentado, duplicado/triplicado, e distorcido.

      Matar um benefício que existe é muito difícil. Impossível, até, senão pela completa disfuncionalidade. Porém converter benefícios, transferindo destinos e mantendo origem, é muito mais possível de acontecer.

      E daí que, à guisa de criar Renda Básica Universal, implementada em todo como se fosse Imposto de Renda Negativo / Renda Básica Líquida, é algo que é mais defensável em nível político, ainda que seja se todo indesejado por todo mundo que será afetado negativamente pela perda de benefício.

      De certa forma, esse texto acima não é muito sobre o que seria melhor no final, mas dos passos factíveis de chegar lá, sem gerar ainda mais distorções.

      Responder
      • Se eu entendi bem, seu foco não é em ampliar a rede de pesca e sim evitar que joguemos 2 ou 3 redes na mesma área.

        Como poderíamos, da a atual amplitude do programa, reduzir duplicações e triplicações de uma maneira fácil pois a infraestrutura para tal já existe. Certo?

        Acho que fui de alguma forma influenciado pelo vídeo que você linkou porque nele também é tratado um pouco do escopo do programa e sobre como chegar em quem o programa chega pouco ou não chega.

        Obrigado pela atenção! Acompanho “silenciosamente” seus textos e vídeos.

        PS: Já fiz um de seus velhos cursos. Guardo parcas esperanças que haverá uma versão 2.0 dele. Talvez uma versão “te ensino a usar a motosserra, corte-se se quiser”.

        Responder
        • Eis um ponto importante. Jogar a rede em lugares diferentes é ampliar a rede. Ficar jogando a rede no mesmo lugar diminui a efetividade da rede.

          Continuando a analogia, já que a rede vai ser jogada três vezes de qualquer maneira, focar em áreas sem repetição é um jeito de aumentar o alcance da rede.

          A rede “ser jogada três vezes de qualquer maneira” são os programas constitucionais/obrigatórios que já se tem hoje. Coisas que são politicamente impossíveis de se abolir. Mas que são bem menos impossíveis de alterar o redirecionamento. Continua existindo a fonte, mas mudam os destinatários.

          Sobre como poderíamos, o texto acima é um pouco enganoso. Ele soa como uma sugestão aos políticos, como se eles já não soubessem dessas coisas. Mas na verdade é um texto mais educativo à população, que essas coisas já estão acontecendo. A recente reforma tributária foi bem mais que 1/3 do que é necessário fazer para alcançar o objetivo da RBUL, ainda que não pareça ter muito disso nos textos. Não tem muita coisa no texto no sentido de mandar dinheiro aos pobres, mas tem um grande foco em diminuir/reverter a regressão dos impostos, que é basicamente a mesma coisa para quem tem renda.

          As outras grandes partes para a RBU/RBUL acontecer são o IR da pessoa física (que tem algumas regressões) e por fim os próprios programas constitucionais. Mas mexer nessas duas “pernas da regressão” tem pouco efeito de forma isolada. Assim como foi a mexida da tributação PJ e de fundos. Meio que tem de pegar todas as frentes de regressão concreta, para acabar com a regressão transversal.

          A grande sacada é que já existem Renda Básica no Brasil. As coisas que faltam para chegar ao RBU é (1) tirar as condicionantes e (2) fundiar/financiar. Que se parar para pensar, são duas coisas que andam de mãos dadas.

          O Líquido vira fonte de financiamento e de aumento de alcance, ao mesmo tempo que permite tirar condicionantes. Voalá.

          Responder
          • O interessante é como você disse sobre a reforma tributária ter avançado nessa direção sem ter deixado isso claro no texto. Talvez para chegar na solução, diversas reformas em pontos tangenciais terão que ser feitas, ao invés de uma “grande reforma” atacando a questão diretamente.

            Existe algum senador/deputado ou comitê legislativo que está movendo “2 palitos” nessa direção?

        • De curso… Segue improvável. Os cursos que eu fazia eram muito avançados. Pelo contrário até, estou pensando em focar no pessoal ultra básico, e daí, talvez, peneirar um pessoal mais avançando. Mas isso é muito a frente ainda.

          Curso, eu falo e insisto: tem poucas coisas melhores que sentar para ler os relatórios gerenciais e convocações/atas de assembleia. Só isso coloca a pessoa no topo do conhecimento, em nível de analista ou mais.

          Responder
          • Em alguma das suas entrevistas, você disse sobre um hábito que você teve por um tempo que foi ler o fnet. Não os relatórios mas o fnet todo. Eu fiz isso há alguns anos atrás por dois meses.

            O salto é incrível, principalmente porque tive curiosidade de cavucar o porquê de certas decisões que as pessoas tomam na gestão e nas assembleias.

            Obrigado.

Deixe um comentário